E de repente eu estava ali, dentro de um pequeno e antigo trem, customizado com pichações coloridas, rumo a Saint-Jean-Pied-de-Port
Essa é uma releitura do diário que escrevi durante o Caminho de Santiago de Compostela. Todos os dias anotava minhas melhores impressões, registrando detalhes que de outra maneira se perderiam no tempo…
Assim que chegamos a Saint Jean buscamos informações, e logo já estávamos com nosso passaporte de peregrino em mãos e um guia de cidades e serviços pelo caminho.
Na manhã de nossa partida fomos ao correio despachar pra casa, uma mochila bem pesada, que trazíamos de outra trip, pois decidimos carregar somente o básico e necessário no caminho, afinal quanto menos peso melhor.
Preparamos os lanches e regulamos as bikes. Antes de nos despedir de Saint Jean Pied de Port, passamos na Igreja pedindo bênção e proteção . Meu coração batia forte à caminho de Santiago...
1° etapa
Era outono quando iniciamos o caminho francês; após deixarmos a linda Saint-Jean-Pied-de-Port começamos a subir os Pirineus.
Esse admirável conjunto de montanhas que formam uma fronteira natural entre a França e a Espanha, é o primeiro desafio para o peregrino que escolhe esse caminho, entre tantos, para Santiago de Compostela.
São 28km de Saint Jean, na França até Roncesvalles, o primeiro abrigo de peregrinos na Espanha. Mas não se engane com essa quilometragem tão curta, pois são 20 km de subidas intermináveis, mas que proporcionam uma visão esplêndida!!!
Bem lá no alto um grande painel incentiva a peregrinação, com uma frase tão real quanto assustadora:
" Quem sobe os Pirineus, tem a sensação de tocar o céu”
Assim que chegamos no ponto mais alto senti a força do vento como nunca antes, e por sorte neste momento não estávamos pedalando; uma forte rajada arrancou a bike das minhas mãos, me joguei no chão pra não ser arrastada pelo vento. O Gui também se jogou e me segurou. Mario, o italiano que seguia esse trecho conosco, se agarrou num poste. Este é um lugar onde sem dúvida, o vento mostra seu poder, e onde tive a certeza que nada somos diante dessa força. Tão logo passou, seguimos rapidamente antes que outra rajada nos atingisse.
Atravessar parte dessa cadeia de montanhas, é colecionar 28km de experiências intensas e marcantes; com a natureza nos desafiando constantemente.
Peregrinar todo esse caminho, é vivenciar momentos que ficarão impregnados na alma. É o convite para um profundo mergulho em nós mesmos.
2° etapa
Se foi difícil enfrentar as subidas e os ventos fortes dos Pirineus, a descida até Roncesvalles levou apenas alguns minutos.
Mas já era meia-noite quando chegamos na porta do albergue de peregrinos, que estava fechada...
Eu me sentia tão agradecida em estar ali, que ter uma varanda pra passar a noite, um banheiro e uma pilha de colchonetes, foi realmente uma benção...um cuidado do hospitaleiro com os peregrinos que chegavam tarde.
De manhã fomos presenteados com uma deliciosa ducha quente, e logo depois, seguimos felizes e confiantes por uma trilha encantadora em meio a uma floresta tingida de outono.
Mas o caminho é sempre uma surpresa, e nosso desafio do dia: as pedras que enfrentamos nos últimos quilômetros até Zubiri.
Foi então que pensei e verbalizei,
“Nossa, acho que chegaremos purificados em Santiago, prontinhos para receber a benção!”
rsrsrsrs...
Não havia escolha a não ser vencer os obstáculos à nossa frente!
Venci as pedras, a dor no joelho e ganhei mais confiança!
E esse trecho me trouxe mais uma profunda reflexão, entre tantas que teria ao longo do caminho.
3° etapa
"Entrem, instalem-se e depois falaremos com vocês"
Assim dizia o cartaz na porta do albergue de peregrinos!
E assim fizemos!
O abrigo em Zubiri não tinha um hospitaleiro e pedia apenas um donativo pela hospedagem, mesmo assim estava organizado e havia banho quente.
Na pequena cidade de Zubiri, descansamos e renovamos nossas forças.
Na manhã seguinte pedalamos rumo a Pamplona, um trajeto curto e uma parada necessária pra consertar uma de nossas bicicletas.
Pamplona é a capital da província de Navarra, no norte de Espanha, cidade da tradicional festa de São Firmino. Cheia de histórias, ela encanta com seus monumentos e quantidade de áreas verdes.
Antes de deixamos as bikes pra revisão, saímos para explorar o entorno...chocolate quente com o melhor croissant para aquecer, picnic na cidadela do século XVI, e de repente...tudo fechado! Lojas, supermercados...às 14:30h a cidade dorme, os pueblos dormem, em plena luz do dia. Sim, a famosa siesta é levada a sério, e foi então que ajustamos nossos relógios à cultura local.
Por volta das 16:30h tudo renasce, a cidade acorda, as lojas voltam a funcionar, pessoas saem pra fazer compras e caminhar, os bares ficam movimentados, brindes cheios de euforia e crianças correndo pelas ruas iluminadas. Mas apesar do alvoroço, às 21h a cidade vai aquietando-se novamente.
No dia seguinte pegamos nossas bicicletas e rumamos para Puente la Reina, nossa próxima parada. E a partir dali, fui tomando consciência de um pensamento que me acompanha até hoje:
“Nenhum dia é igual ao outro, cada minuto é um novo aprendizado, novos desafios e oportunidades estarão sempre presentes e mesmo quando parece impossível, podemos superar nossos limites.”
4° e 5° etapas
Logo que chegamos no albergue de Puente la Reina, tomamos um banho e saímos para conhecer o lugar que nos abrigava, uma vila medieval onde duas rotas do caminho de Santiago se fundem. Ao cair da tarde, atravessamos a passos lentos a magnífica ponte do século XI com seus 6 arcos, enquanto observamos silenciosamente o fluxo suave do rio Arga.
No dia seguinte acordamos bem cedo, passamos por Estella, onde alguns amigos do caminho resolveram ficar e aproveitar a fonte de vinho. Nada mal, aliás, tudo de bom!!! Mas como havíamos pedalado pouco nos dias anteriores, resolvemos seguir até Los Arcos, que nos acolheu de forma especial!
No albergue, o hospitaleiro com sua alegre simpatia, nos deixou a vontade; o lugar era bem cuidado e o banho estava ótimo! Por volta das 18h, o azul do outono coloria o crepúsculo, e então saímos em busca de um bom vinho e ingredientes para o jantar.
Passeamos tranquilamente pela cidade até nos deparar com a igreja Santa Maria, uma incrível construção do século XVI em estilo gótico; entramos mansamente enquanto o padre dava uma bênção final. De repente, várias senhorinhas com seus véus e velas acesas, saíram em procissão. A santa acompanhou, as pessoas acompanharam e nós acompanhamos...
Nesse momento tive a certeza, de que eu não tinha que estar em nenhum outro lugar que não fosse exatamente ali. O som da Ave Maria cantada em espanhol ecoava pelas ruas de Los Arcos, enquanto as velas acesas iluminavam o caminho, tornando tudo mágico demais!
E eu intutulei, O presente!
6° etapa
Entramos em La Rioja, na bela Logroño, a ideia era chegar cedo e aproveitar a estrutura da cidade, pra conseguir mudar a data do nosso voo de volta ao Brasil. .
O ritmo que escolhemos manter no caminho, pedia mais tempo. Conhecer melhor os lugares por onde passávamos, fazia total sentido pra nós.
Aproveite a estrutura da cidade de Logroño para resolver coisas importantes, como mudança de passagem aérea, banco ou caso esteja fazendo o caminho de bike, algum conserto...
Apesar de Logroño ser uma cidade vibrante, tive a sensação de que o centro histórico quase havia sido engolido pelas novas construções do seu entorno.
Mas bela catedral do século XV marcava território de forma imponente, ressaltando a arte barroca, gótica e renascentista que pactuavam sobre a antiga igreja românica de São Lucas.
Depois de um longo passeio, voltamos ao albergue que oferecia uma boa cozinha, onde preparamos nosso jantar, enquanto desfrutamos de uma conversa cheia de valor com a hospitaleira Lola.
No dia seguinte vivi uma situação única e que me marcou profundamente. Passando por Navarrete, me senti incrivelmente atraída para conhecer a Igreja Santa Maria, uma construção do século XVI
No seu interior, me deparei com a imagem de Maria em tamanho real, fiquei hipnotizada e senti um forte calor no peito...entrei em estado de meditação, oração, e gratidão; Então voltei novamente para imagem de mármore e nossos olhos se encontraram, nesse instante fui tomada por um profundo sentimento de benção e em minha face rolaram lágrimas de êxtase...
Dividir isso com vocês, é expor o mais íntimo do meu ser. Mas o caminho é assim, é único, é pessoal, é inesperado e transformador. Já não tem uma única religião, mas tem espiritualidade, interiorização e autoconhecimento. .
7° etapa
Na saída de Navarrete, uma antiga fachada nos chamou a atenção. Um hospital de peregrinos do século XII, encontrado em escavações arqueológicas, foi desmontado pedra a pedra e recolocado como porta do cemitério.
O dia estava lindo, e logo depois de Najera, percorremos o incrível caminho das pedras, onde os peregrinos ao longo dos anos foram criando esculturas, deixando uma visão quase psicodélica! É claro que eu não poderia passar sem colocar minha pedra e me sentir parte do caminho.
O sol começava a se pôr quando passamos por Santo domingo de la Calzada. Contam que inicialmente ali era um bosque, onde o ermitão Domingo se estabeleceu construindo uma ponte, um templo e um hospital. Um lugar repleto de lendas, mas que não ficamos para escutar todas elas.
E assim seguimos pedalando até Grañon, uma cidadezinha charmosa! O abrigo era uma antiga igreja, e logo que entramos, avistamos os peregrinos e o hospitaleiro, sentados à mesa para o jantar.
O cansaço estampava nossos rostos, foram 67km até ali. Mas o hospitaleiro tinha normas rígidas e chegamos 30 min. atrasados, então fomos convidados a continuar o caminho. Eu não estava acreditando nisso!!! Já era noite e o próximo abrigo ficava a 3km, desviando pela carreteira-estrada...
Na saída, uma de minhas pedras caiu do meu bolso e quebrou...sim, eu carrego pedras nas minhas viagens...rsrsrs...minha ametista ficou em Grañon...
Busquei forças e pedalei quase que cegamente, tentando não me importar com os caminhões que passavam por nós. O meu objetivo era chegar o quanto antes!
Redecilla del Camino foi o alívio e gratidão em comunhão com um sentimento imenso de proteção! E de repente estávamos ali, tomando um vinho, num albergue simples e aconchegante, com um hospitaleiro alegre e divertido, que nos recebeu de braços abertos.
70km de profundo aprendizado.
8° etapa
Imagine um vilarejo com poucas casas, um bar, uma igreja e um monastério do século XII. Exatamente nesse local, que o padre José Maria e a irmã Júlia acolhiam os peregrinos com sua tradicional e caliente sopa de alho.
Dormir em San Juan de Ortega estava em nossos planos, e logo que avistamos o vilarejo cruzamos com a brasileira Ana e o australiano Robert, que seguiam a passos firmes numa conversa empolgada. Logo depois veio Rorie, um inglês que nos reconheceu de Grañon e o espanhol Miguel que chegara um pouco antes.
Nos instalamos já loucos por um banho, mas pra nossa surpresa, o albergue não tinha água quente!!! A temperatura havia caído e marcava perto dos 7 graus.
E pasmem, o Gui foi o único que teve coragem de tomar o banho...geladooo!!!
Mas nada como um vinho pra aquecer! Então logo, nos reunimos no bar ao lado.
De repente éramos seis e o entrosamento foi instantâneo, uma verdadeira conexão que nos manteve bem próximos no pouco tempo em que estivemos juntos! A conversa rolou solta e demos muita risada.
Estar no caminho é se encontrar, mas também é encontrar pessoas de todas as partes do mundo. Algumas seguem, enquanto outras permanecem na mesma vibração.
Na hora do jantar sentamos em volta da grande mesa, escutando o padre contar preciosas histórias que nos encheram de esperança e coragem. Miguel compartilhou alguns cogumelos que havia colhido ali perto e nós dividimos o pão que trouxemos, acompanhando a deliciosa sopa de alho.
A noite estava gelada, mas me mantive quentinha e feliz dentro do meu sleeping xodó, onde dormi um sono profundo e reparador.
O mesmo não aconteceu com o Gui, que levantou 5 vezes na madrugada atravessando o enorme alojamento para chegar ao banheiro...sem dúvida para ele, San Juan foi uma mistura de deleite e provação...rsrsrs...
9° e 10° etapas
Passamos o dia conhecendo Burgos! Essa grande cidade fundada em 884 é repleta de histórias, começando pelo Arco de Santa Maria, principal porta de acesso, na idade média. Atravessamos o Arco, descobrimos belos monumentos, e chegamos a sua enorme e imponente catedral em estilo gótico, renascentista e barroco...que mais me pareceu um museu.
Mas finalizamos nossa tarde em Rabé de las Calzadas, um minúsculo, encantador e florido Pueblo.
No dia seguinte chegamos cedo na querida cidade de Castrojeriz, um lugar onde colecionamos ótimas lembranças!
Alguns quilômetros antes, as ruínas do convento de San Antón, um antigo abrigo esotérico, já havia me deixado hipnotizada pelos seus belos arcos ogivais.
No albergue, o hospitaleiro Miguel nos recebeu calorosamente. O abrigo tinha um excelente banho quente, mas não havia cozinha...então logo que saímos para um passeio já ficamos de olho num lugar pra jantar.
Passamos pela igreja, pelo monastério de São francisco e chegamos a uma internet-bar-restaurante de nome La Taberna. Assim que entramos Antonio, o proprietário, percebeu que éramos brasileiros e nos recebeu de forma surpreendente!
Nos convidou para sua mesa, oferecendo vinho e bocadilhos por conta da casa. Animadamente nos contou a história sobre sua amizade com Paulo Coelho e a gratidão por ele ter escrito o livro: Diário de um Mago. Que ao longo dos anos incentivou pessoas de todos os lugares do mundo, a fazer o caminho. E pra encerrar nosso animado papo, Antonio colocou pra tocar a música Aquarela do Brasil….aaaaa... meu coração ferveu dentro do peito!
Quando estamos em terras estrangeiras, sentir-se acolhido é algo tão precioso, que cria um forte vínculo emocional pelas pessoas e pelo local.
11° etapa
A música invadiu os meus sonhos...foi crescendo e se fazendo presente, até que finalmente meus olhos se abriram.
Assim o hospitaleiro Miguel acordou os peregrinos que tiveram a sorte de dormir em Castrojeriz. Com uma música sacra do século XII que lentamente tomou conta de todo o albergue, ele nos despertou de forma amável e sublime.
Uma paz imensa invadiu meu coração, por alguns instantes meu espírito nem sabia exatamente onde estava...
Que surpresa! Que maneira deliciosa de começar o dia!
Miguel foi além da simpatia. Foi inteiro, acolhedor e fez questão de tornar nossa passagem por Castrojeriz inesquecível!
E mesmo no abrigo não sendo possível cozinhar, ele deu um jeito de preparar e oferecer uma mesa com café, leite, chá, bolachas e maçãs para a celebrar a nossa jornada.
Na saída ainda nos faltava visitar as ruínas do castelo castrum Sigerice, uma construção romana do século IX, que estrategicamente se localizava no ponto mais alto da redondeza, de lá avistamos toda a cidade e mais além...
Em Castrojeriz, deixei um pedacinho do meu coração e levei comigo o perfume do acolhimento sincero e a certeza de querer voltar!
Até breve com mais etapas do Caminho.
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